A Correlação entre o Canto Bizantino Ortodoxo Russo e Grego

 O canto bizantino, também conhecido como canto eclesiástico ou salmodia bizantina, é a tradição musical litúrgica da Igreja Ortodoxa, desenvolvida a partir do século IV no Império Bizantino, com centro em Constantinopla (atual Istambul). Tanto a tradição grega quanto a russa partilham da mesma raiz: o sistema bizantino de oito modos (échos ou glásy), a notação neumática, o caráter monódico (uma só linha melódica sem harmonia polifônica) e o princípio de que o canto deve servir à palavra divina, não ao virtuosismo.

Origens comuns

Até o século XV, gregos e eslavos usavam praticamente o mesmo repertório e sistema musical. Os primeiros missionários bizantinos, Cirilo e Metódio (século IX), levaram o canto litúrgico eslavo à Morávia e, posteriormente, à Rus de Kiev (988, batismo de Vladimir). Nesse período, o canto era cantado em grego ou em eslavo eclesiástico com melodias essencialmente idênticas às de Constantinopla.

Após a queda de Constantinopla (1453), as tradições começaram a divergir, mas nunca se romperam completamente.

Principais semelhanças

  1. Sistema modal Tanto na tradição grega (Patriarcado de Constantinopla, Monte Athos, Grécia) quanto na russa (Igreja Russa antes e depois de 1917), mantêm-se os oito modos (quatro autênticos e quatro plagais). Os nomes gregos (πρῶτος, δεύτερος, τρίτος, τέταρτος, πλάγιος τοῦ πρώτου etc.) correspondem exatamente aos russos (glas 1, glas 2, glas 3… glas 8).
  2. Notação
    • A notação neumática bizantina média (séculos XII–XV) é a base comum.
    • Os gregos reformaram-na no século XIX (Sistema Novo ou Reforma dos Três Professores, 1814–1820), simplificando e introduzindo sinais mais precisos de ritmo e ornamentação.
    • Os russos, até o século XVII, continuaram usando a notação “znak” (ou “kryuki”), derivada diretamente da notação bizantina paleográfica, mas mais complexa e cheia de sinais enigmáticos.
  3. Repertório litúrgico Hinos fundamentais como o Triságion, o Cherubikón, o Phos Hilarón, os Troparia da Ressurreição e muitos kontákia de Romanos o Melodista têm versões gregas e russas que, quando reduzidas ao esqueleto melódico, revelam identidade ou variação mínima.
  4. Estética teológica Em ambas as tradições o canto é visto como “ícone sonoro”. A voz humana é o único instrumento permitido, e o objetivo é suscitar hesychía (quietude interior) e theória (contemplação).

Principais diferenças históricas e estilísticas

Apesar da raiz comum, a partir do século XV as tradições tomaram rumos distintos:

Tradição grega (actual)

  • Mais fiel à prática constantinopolitana pré-queda.
  • Reforma de 1814–1820 (Chrysanthos, Gregorios, Chourmouzios) tornou a notação analítica e o ritmo mais mensurado.
  • Canto geralmente mais rápido, ornamentação abundante (especialmente no Monte Athos e em psáltes famosos como Simon Karas, Lycourgos Angelopoulos ou Fr. Grigorios Stathis).
  • Presença marcante da isokratima (drone contínuo, muitas vezes em movimento paralelo ou com microvariações).

Tradição russa

  • Século XV–XVII: período do “znamenny raspev” (canto de signos), considerado o ápice da originalidade russa. Melodias mais amplas, kokízniki (fórmulas ornamentais típicas), uso de popévki (padrões melódicos curtos).
  • Século XVII: cisma dos Velhos Crentes (1666). Os Velhos Crentes preservaram o znamenny quase intocado, enquanto a Igreja oficial, sob influência ocidental (polonesa, italiana, alemã), adotou gradualmente o “partesnoie penie” (canto polifônico de partes, século XVII–XVIII) e, no século XIX, o estilo “italianizante” de Bortniansky, Berezovsky e Tchaikovsky.
  • Século XX–XXI: renascimento do canto monódico antigo, tanto na Igreja Russa no estrangeiro (ROCA, Jordanville) quanto dentro da Rússia pós-soviética (mosteiros como Valamo Novo, Sretensky, Trinity-Sergius). Hoje convivem três correntes russas principais:
    1. Znamenny tradicional (Velhos Crentes e alguns mosteiros);
    2. Canto “búlgaro” ou “grego simplificado” (versões russas dos melos gregos do século XIX);
    3. Canto “de Kiev” ou “sinodal” (polifonia harmônica do século XIX–XX).

Convergência contemporânea

Desde os anos 1980–1990, com o acesso a gravações e partituras, observa-se um movimento de “re-helenização” na Rússia e de redescoberta do legado eslavo-bizantino na Grécia:

  • Muitos coros russos (ex.: Coro do Mosteiro de Valamo, Coro do Seminário de São Petersburgo) cantam hoje o repertório grego clássico (Petros Peloponnesios, Iakovos Nafpliotis, Konstantinos Pringos) em eslavo eclesiástico.
  • Psáltes gregos como Lycourgos Angelopoulos e Georgios Michalakis estudaram e gravaram trechos de znamenny raspev, reconhecendo-o como “o mais puro canto bizantino preservado”.
  • Congressos internacionais de música bizantina (Thessaloniki, Joensuu, Moscovo) reúnem especialistas que demonstram, com transcrições comparativas, que muitas melodias russas do século XVI são quase idênticas às melodias gregas do século XIV (ex.: o kondak da Páscoa “Аще и в гроб снизшел еси…” / “Εἰ καὶ ἐν τάφῳ κατῆλθες…”).

Conclusão

O canto bizantino russo e grego são dois ramos do mesmo tronco. O ramo grego preservou maior continuidade com a prática constantinopolitana tardia e desenvolveu uma ornamentação mais exuberante; o ramo russo, após séculos de evolução própria (znamenny) e ocidentalização, está agora, no século XXI, retornando às fontes bizantinas comuns. A diferença hoje é mais de estilo interpretativo e de língua do que de substância musical ou teológica. Quem ouve um bom coro russo cantando o Cherubikón de Petros Bereketis em eslavo e, em seguida, o mesmo hino em grego pelo Coro Grego de Lycourgos Angelopoulos, percebe imediatamente a irmandade profunda: é a mesma alma sonora, apenas vestida com sotaques diferentes.

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