A Expansão Corporativa no Centro do Porto: Contenção ou Mediação Frente ao Aumento da Criminalidade?
O centro histórico do Porto tem vindo a sofrer, nos últimos 15 anos, uma transformação profunda impulsionada pelo investimento privado e corporativo. A reabilitação urbana, o turismo de massa, a instalação de grandes cadeias hoteleiras, escritórios de multinacionais, coworkings, lojas de luxo e apartamentos de curto prazo (AL) alteraram por completo a fisionomia e a sociologia da Baixa, das Ribeiras, da Vitória, de Miragaia e da zona da Foz velha. Este processo trouxe riqueza, emprego qualificado, aumento da receita fiscal e uma imagem internacional renovada, mas também gerou efeitos colaterais graves: gentrificação acelerada, expulsão de moradores tradicionais, sobrecarga de serviços públicos e, de forma cada vez mais visível, o crescimento de várias formas de criminalidade.
1. O que mudou concretamente no tecido urbano e social
- Mais de 70 % dos edifícios do centro histórico foram reabilitados entre 2008 e 2024, grande parte por fundos de investimento imobiliário estrangeiros e nacionais.
- O preço médio do metro quadrado na Baixa passou de cerca de 1 200 € em 2010 para mais de 6 500 € em 2025 (dados do INE e Confidencial Imobiliário).
- A população residente na União de Freguesias do Centro Histórico caiu cerca de 28 % entre 2011 e 2021 (Censos 2021) e continua a cair.
- O número de camas turísticas legais e ilegais multiplicou-se por 8 no mesmo período.
- Entraram empresas como a Amazon (hub logístico), Farfetch (sede), Natixis, Volkswagen Digital Solutions, escritórios de advocacia internacionais, consultoras Big4, etc.
2. A criminalidade que acompanha a expansão
Os dados da PSP e da PJ (Relatórios Anuais de Segurança Interna 2019-2024) mostram:
- Aumento de 180 % nos furtos por carteirista na Baixa e Ribeiras entre 2018 e 2024.
- Crescimento de 220 % nos crimes de burla informática e fraude com MB Way nos últimos quatro anos.
- Surgimento de redes organizadas de furto em alojamentos locais e em hotéis de luxo.
- Aumento de 350 % nas denúncias de tráfico e consumo de droga sintética em zonas de diversão noturna (Galeria de Paris–Cândido dos Reis–Passeio dos Clérigos).
- Crescimento de situações de violência associada ao álcool e às drogas (agressões, facadas, brigas de rua) nas madrugadas de fim de semana.
- Primeiros casos de extorsão a comerciantes e donos de bares por grupos que se apresentam como “seguranças privados”.
Estes fenómenos não são novos em cidades turísticas, mas no Porto surgiram com velocidade e intensidade invulgares devido à combinação de três fatores:
- Concentração súbita de riqueza visível (turistas, estudantes Erasmus, nómadas digitais).
- Despejo de população residente tradicional (menos “olhos na rua” e controlo social informal).
- Falta de planeamento policial proporcional ao crescimento da população flutuante.
3. Duas visões em confronto
A. A visão da contenção (defendida por associações de moradores, partidos de esquerda e alguns académicos):
- A expansão corporativa e turística deve ser travada ou fortemente condicionada.
- Propõem moratórias à construção de novos hotéis e AL no centro histórico, limite de 20-25 % de imóveis destinados a alojamento turístico por rua ou quarteirão, renda condicionada em zonas de pressão, taxa turística fortemente aumentada e direcionada para habitação acessível.
- Argumentam que o modelo atual é insustentável e que a segurança só voltará com o regresso de população residente fixa.
B. A visão da aceitação com mediação (defendida pela Câmara do Porto, Associação de Turismo, Associação Comercial do Porto e grande parte do setor empresarial):
- O crescimento é inevitável e desejável; travá-lo seria matar a galinha dos ovos de ouro.
- Defendem mais policiamento visível e especializado (unidades de turismo, equipas de intervenção rápida), videovigilância inteligente, parcerias público-privadas para segurança (seguranças privados pagos parcialmente pela taxa turística), regulamentação mais dura do AL ilegal, programas de revitalização comercial que mantenham lojas tradicionais e criação de habitação acessível em zonas adjacentes (Paranhos, Campanhã, Lordelo) para fixar população jovem.
4. Balanço possível
Nenhum dos dois extremos parece viável por si só:
- Travar completamente a expansão corporativa e turística seria economicamente suicida e juridicamente quase impossível (direito de propriedade, contratos já assinados, fundos europeus envolvidos).
- Deixar o mercado crescer sem limite e sem contrapartidas levará, em poucos anos, a uma Baixa semelhante à de Barcelona ou de Lisboa (Alfama/Bairro Alto): esvaziada de moradores, com criminalidade organizada instalada e polícia em permanente situação de sobrecarga.
A solução passa necessariamente por uma estratégia híbrida: a) Regulação forte do alojamento local e dos grandes projetos hoteleiros (já em curso, mas ainda insuficiente). b) Aumento muito significativo do efetivo policial no centro histórico (a PSP tem hoje menos 120 agentes do que em 2015 na área da Baixa). c) Criação de uma taxa turística municipal elevada (5-7 € por noite) exclusivamente afeta a segurança, limpeza e habitação. d) Programa agressivo de habitação acessível no centro (compra de frações por parte da Câmara ou do IHRU e arrendamento a rendas controladas a jovens e famílias). e) Parcerias com as grandes empresas instaladas para financiamento de projetos de responsabilidade social que fixem população (creches empresariais, bolsas de habitação para trabalhadores, etc.).
Conclusão
A expansão corporativa no Grande Centro do Porto não é, por si só, a causa da criminalidade, mas é o catalisador que, sem mediação inteligente, a amplifica de forma dramática. Não se trata de escolher entre desenvolvimento ou segurança, mas de perceber que um desenvolvimento que expulsa residentes e sobrecarrega o espaço público sem reforçar proporcionalmente os mecanismos de controlo social e policial gera, inevitavelmente, insegurança.
A cidade tem hoje uma janela de oportunidade estreita: ou regula agora, com coragem e visão de longo prazo, ou arrisca-se a tornar-se, em menos de uma década, uma caricatura turística onde só circulam visitantes de passagem e gangs que exploram a ausência de comunidade. O Porto não precisa de escolher entre ser uma cidade viva e uma cidade segura; precisa de perceber que uma coisa é condição da outra.
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