A Missa em Ré menor de Joseph Haydn

 

(Missa in angustiis, Hob. XXII:11), mais conhecida como «Missa Nelson» ou «Missa Imperial»

Compôs-se em 1798, num dos momentos mais sombrios da vida de Haydn e da Europa. Napoleão avançava irresistivelmente pela Itália e aproximava-se da Áustria; Viena vivia sob ameaça constante de invasão. Haydn, com 66 anos, sentia o peso da idade e das responsabilidades na corte dos Esterházy. É nesse contexto de angústia colectiva (angustiis) que nasce uma das obras corais mais dramáticas e luminosas do Classicismo.

A missa recebeu dois cognomes famosos, ambos posteriores à composição:

  • «Missa Nelson», porque, dias antes da estreia (13 de Setembro de 1798, em Eisenstadt), chegou a notícia da vitória do almirante Nelson em Aboukir contra a frota francesa. A Áustria exultou e a obra foi imediatamente associada ao triunfo.
  • «Missa Imperial» (ou «Lord Nelson Mass» em inglês), por causa do trompete e dos tímpanos guerreiros que evocam fanfarras militares – embora Haydn os tenha escrito antes de saber da batalha.

Musicalmente, é uma missa curta (cerca de 40-45 minutos), mas de intensidade quase operática. Haydn prescindiu de madeiras (flautas, oboés, fagotes) na orquestra – talvez por limitações práticas na capela dos Esterházy nesse Verão – e compensou com um tratamento brilhante e arriscado dos trompetes e tímpanos, que funcionam como verdadeiros protagonistas. O resultado é uma sonoridade metálica, incisiva, por vezes quase bélica, que contrasta com a profundidade espiritual do texto litúrgico.

Os momentos que ficam na memória:

  • Kyrie: um início majestoso e sombrio em ré menor, com o coro a implorar «Kyrie eleison» em blocos homofónicos poderosos. O «Christe» central, em Ré maior, é uma das melodias mais ternas que Haydn alguma vez escreveu.
  • Gloria: explosivo. O «Gloria in excelsis Deo» irrompe como um clarim de guerra; o «Qui tollis» torna-se súplica quase desesperada, com os solistas em canon angustiante.
  • Credo: talvez o movimento mais genial. Haydn faz o «Credo in unum Deum» em tempo rapidíssimo (allegro con spirito), como se afirmasse a fé com urgência incontornável. O «Et incarnatus est» muda abruptamente para um Adagio doloroso em dó menor; o «Crucifixus» é um dos raros momentos verdadeiramente trágicos de toda a produção sacra haydniana. Depois, o «Et resurrexit» explode em Ré maior com uma alegria quase violenta.
  • Benedictus: aqui está o coração «bélico» da missa. O trompete e os tímpanos entram em fanfarra militar enquanto o coro canta «Benedictus qui venit in nomine Domini». Muitos ouvintes da época juraram ouvir canhões. Haydn transforma o «Hosanna» num fugato vertiginoso.
  • Agnus Dei: começa como lamento fúnebre, mas a «Dona nobis pacem» final é uma marcha triunfal em Ré maior, com os trompetes em registo heroico. É a paz conquistada depois da tempestade – exactamente o que a Europa desejava em 1798.

Haydn disse um dia, com o seu habitual humor: «Não fui eu que escrevi esta missa, foi o medo que a ditou.» Mas o medo, nas suas mãos, transformou-se em esperança. A Missa em Ré menor é uma obra paradoxal: soa como uma missa de guerra e, ao mesmo tempo, como uma das mais fervorosas orações pela paz que o século XVIII nos deixou.

Beethoven, que assistiu à estreia de outra missa de Haydn em 1802, ficou tão impressionado com a vitalidade do velho mestre que, anos depois, quando compôs a própria Missa Solemnis, ainda tinha presente a lição da «Nelson»: a fé não precisa de ser solene para ser profunda; pode ser dramática, humana, até quase teatral.

Hoje, mais de dois séculos depois, quando ouvimos aqueles trompetes cortantes e aquele «Dona nobis pacem» final, sentimos o mesmo que sentiram os fiéis de Eisenstadt em 1798: alívio, gratidão e uma certeza inexplicável de que, mesmo nas horas mais negras, a música consegue dizer «ainda há esperança».

Uma obra-prima absoluta do repertório sacro – e, para muitos, a mais bela de todas as missas de Haydn.

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