O free jazz, esse território selvagem da música improvisada onde as regras do bebop e do swing se dissolvem em fluxos coletivos de som, encontrou na Rússia um solo fértil há décadas. Mas se os anos 70 e 80 foram dominados pelo Ganelin Trio e pelo Moscow Composers Orchestra – pioneiros que misturavam folk russo com explosões avant-garde, como documentado no festival de Zurique de 1989 –, os anos 2010 e 2020s trouxeram uma nova vaga de improvisadores russos. Essa geração, nascida no pós-Perestroika e moldada pela era digital e pelas restrições geopolíticas recentes, está redefinindo o free jazz como algo mais introspectivo, híbrido e globalizado. Não é mais só sobre rebelião contra o regime soviético; agora, é sobre navegar a fragmentação cultural em um mundo conectado, incorporando elementos de eletrônica, folk contemporâneo e até noise, tudo sem amarras harmônicas ou rítmicas fixas.
Essa "nova onda" emergiu em um contexto de efervescência underground: festivais como o "Jazz Autumn" do Goethe-Institut em Moscou e São Petersburgo, e selos independentes como a Leo Records (que continua lançando antologias como Golden Years of the Soviet New Jazz, mas agora com foco em jovens), deram espaço para experimentações. A pandemia acelerou o processo, forçando colaborações remotas e streams que conectaram Moscou a Berlim e Nova York. Como nota o historiador musical Sergei Letov em reflexões autobiográficas, o free jazz soviético tardio era um ato de resistência científica e artística; hoje, para os jovens, é uma terapia coletiva contra o isolamento.
Figuras Chave dessa Nova Geração
Aqui vai um panorama de alguns improvisadores que exemplificam essa vaga. Eles não seguem uma escola única, mas compartilham uma estética de "comprovisation" (composição + improvisação, termo cunhado por John Wolf Brennan e adotado por russos como Arkady Shilkloper, que ainda influencia os novatos).
- Alexey Kruglov (Moscou): Filho do lendário saxofonista Gennady Kruglov, Alexey é um dos mais prolíficos. Seu quarteto com Carolyn Radstell e Paul May (álbum Last Train from Narvskaya, 2023, pela Leo Records) funde free jazz com "recklessness russa" – explosões de sopros circulares e percussão intuitiva que evocam o caos de uma nevasca siberiana. Influenciado por bebop e cool jazz, mas livre como Ayler, Kruglov explora "vozes da lua" em faixas como Voices from the Moon, misturando teatro e sax soprano estendido. Ele representa a ponte entre gerações: clássico de conservatório, mas radical na rua.
- Roman Stolyar (São Petersburgo): Pianista da geração millennial, Stolyar difere dos veteranos ao priorizar texturas minimalistas sobre o "polystylistic" frenético dos anos 80. Seus projetos, como duos com Evelyn Petrova (acordeonista e vocalista), incorporam o folclore russo em loops improvisados, longe do free jazz americano puro. Em álbuns recentes (como colaborações com o Moscow Composers Orchestra revisitado), ele usa o piano preparado para criar paisagens sonoras que soam como Tchaikovsky em colapso – harmônico, mas imprevisível. Petrova, sua parceira frequente, adiciona uma camada vocal etérea, transformando improvisos em narrativas poéticas.
- Sergei Khramtcevich e o TOPOT Orchestra (Moscou): Khramtcevich é o wildcard: um multi-instrumentista (clarinete, eletrônicos) que lidera o TOPOT, um coletivo de 10+ músicos focado em live improv. Não há álbuns polidos; tudo é capturado em vídeos de gigs underground, como os do VK Free Jazz community. Seu som é noise-free jazz: drones de sopros contra batidas glitch, ecoando o industrial russo. Em 2024-2025, eles ganharam tração em festivais como o Total Music Meeting (Berlim), provando que o free jazz russo pode ser "contra-cultural" sem ser datado.
- Outros Destaques Emergentes:
- Artem Ayvazyan Band: Trovador armênio-russo em Moscou, misturando jazz-funk com free improv. Seu jazz-funk-modern é acessível, mas explode em solos coletivos que ignoram escalas.
- Vladislav Bashlov e Antisia Ventures: De volta da diáspora (EUA/Holanda), esse duo pós-pandemia usa contrabaixo e viola em "alternative ethnoart chaos" – free jazz com ritmos eslavos e flautas étnicas.
- Illo.Trio (Moscou): Post-jazz cinematográfico, com elementos de minimalismo e post-rock. Seu set de novembro 2025 no T2P é puro fluxo narrativo, sem pausas.
| Improvisador/Grupo | Cidade/Base | Estilo Híbrido | Álbum/Referência Recente | Influência Chave |
|---|---|---|---|---|
| Alexey Kruglov | Moscou | Free jazz + teatro | Last Train from Narvskaya (2023) | Ornette Coleman, Ganelin Trio |
| Roman Stolyar | S. Petersburgo | Minimal free + folk | Colab. com Evelyn Petrova (2024) | Cecil Taylor, Vyacheslav Guyvoronsky |
| Sergei Khramtcevich/TOPOT | Moscou | Noise improv + glitch | Lives no VK (2025) | Albert Mangelsdorff, Fred Frith |
| Artem Ayvazyan Band | Moscou | Jazz-funk free | Jazz na Baikal Fest (2022) | Roscoe Mitchell, local funk |
| Illo.Trio | Moscou | Post-jazz cinematic | Gig T2P (Nov 2025) | Evan Parker, modern minimalism |
Por Que Essa Vaga Importa Agora?
Em 2025, com a Rússia isolada culturalmente, esses improvisadores estão exportando sua visão via streams e colaborações transnacionais – pense em Kruglov com músicos estonianos como Jaak Sooäär. Como Alina Rostotskaya observou em 2013 (e ainda vale), o "improvisacional é mais amplo que o straight-ahead jazz". Essa nova onda resiste à homogeneização pop, abraçando o "não-idiomático" de Derek Bailey: sem raízes fixas, só fluxo puro. Mas há desafios: censura sutil em festivais e emigração de talentos (como Shmulyian para NY nos anos 2010s) diluem a cena local.
Para mergulhar, comece pela playlist The Sound of Russian Modern Jazz no Spotify ou pelo canal VK free jazz, free improvisation, avant-garde. É uma música que não pede permissão – só que você ouça o caos e encontre ordem nele. Se o free jazz é utópico, como Yuri Vinogradov argumenta, esses russos estão construindo a deles, nota a nota, em meio à tempestade.
Comentários
Enviar um comentário