A Precariedade Camuflada: Contratos na Indústria Pornográfica em Lisboa e no Porto como Armadilha de Falsa Autonomia

 

Nos últimos anos, a indústria pornográfica em Portugal, embora discreta e de escala reduzida em comparação com mercados globais, tem emergido como um setor de sombras urbanas, concentrado principalmente em Lisboa e no Porto. Estes centros cosmopolitas, com a sua vibrante cena noturna e eventos como o ErosPorto, atraem não só produtores amadores e agências informais, mas também uma mão-de-obra vulnerável: homens e mulheres em situação precária, frequentemente jovens desempregados, imigrantes ou estudantes endividados. Aqui, os chamados "contratos em regime de gravação periódica" – acordos informais ou semi-formais para filmagens esporádicas e recorrentes – surgem como uma promessa ilusória de independência financeira. No entanto, longe de libertar, estes arranjos perpetuam um ciclo de alienação, explorando a fragilidade económica e psicológica dos envolvidos para sustentar uma economia do prazer descartável.

A estrutura destes contratos é, por si só, um reflexo da precariedade inerente ao setor. De acordo com um estudo exploratório realizado pela Faculdade de Economia do Porto em 2018, a indústria pornográfica portuguesa opera maioritariamente num regime de freelancing, sem vínculos laborais fixos ou proteções sociais. As "gravações periódicas" não são contratos formais regulados pelo Código do Trabalho, mas sim propostas enviadas por e-mail ou plataformas online, detalhando cenas (de atos orais a mais intensos, com remunerações variáveis entre 200 e 1000 euros por sessão, dependendo da complexidade). Mulheres, que dominam o elenco (cerca de 70% dos performers), recebem tipicamente o dobro dos homens, mas enfrentam carreiras curtas – limitadas a 5-10 anos – devido à pressão por "novidade" e renovação estética. Em Lisboa, onde produtoras amadoras proliferam em estúdios improvisados no Bairro Alto ou em hotéis periféricos, e no Porto, com o ErosPorto como vitrine anual, estes acordos prometem flexibilidade: "trabalha quando quiseres, ganha o que precisares". Mas a realidade é outra: a ausência de salário fixo obriga a múltiplos empregos paralelos, como entregas ou serviços domésticos, transformando a "autonomia" numa ilusão de controlo sobre o caos financeiro.

Esta falsa sensação de independência financeira é o cerne da alienação. Para muitos em situação precária – pense em uma jovem migrante de leste europeu em Lisboa, sem rede de apoio, ou um homem desempregado no Porto, afogado em dívidas estudantis –, os contratos periódicos oferecem um vislumbre de escape. "É dinheiro rápido para pagar as contas e viajar", relatam performers no estudo mencionado, ecoando narrativas comuns em anúncios de agências como "Faz-te atriz: independência em 24 horas!". Contudo, os ganhos são instáveis: uma gravação por mês pode render 500-800 euros, mas pausas forçadas por estigma social ou exaustão física (sessões de 8-12 horas com riscos de lesões) deixam lacunas. O estigma – o medo de revelação familiar ou profissional – agrava o isolamento, forçando o performer a uma dupla vida que drena a saúde mental. Mulheres, em particular, internalizam a pressão por performance impecável, consumindo horas em ginásios ou cirurgias cosméticas financiadas pelos próprios ganhos, perpetuando um ciclo de endividamento disfarçado de empoderamento.

Nos últimos cinco anos, esta dinâmica intensificou-se com a pandemia de COVID-19 e a crise económica subsequente. Em 2020-2022, enquanto o desemprego em Portugal atingia picos de 7-8% (com taxas mais altas entre jovens e imigrantes), o boom do conteúdo online – via OnlyFans ou sites locais – multiplicou as ofertas de gravações periódicas. Relatos de ONGs como a APDES (Associação para o Planeamento, Desenvolvimento e Investigação da Mulher) destacam como a desregulamentação do setor sexual facilita a exploração laboral: sem inspeções ou sindicatos, produtores evitam responsabilidades fiscais ou de saúde (apesar de testes para ISTs serem rotina). Em Lisboa, casos anónimos reportados a linhas de apoio revelam performers presos em "contratos de exclusividade de imagem" que proíbem trabalhos paralelos, mas sem garantias de volume mínimo de filmagens – uma prisão dourada que aliena o trabalhador do mercado formal. No Porto, o ErosPorto, de 2015 a 2023, serviu como recrutador velado, onde promessas de "carreira internacional" atraem vulneráveis, só para os deixar com rendimentos irregulares e exposição digital permanente, que persiste como "currículo involuntário" anos após o fim.

Esta alienação não é acidental: é estrutural. Os contratos periódicos mascaram a exploração ao enquadrá-la como "escolha empreendedora", alinhando-se ao neoliberalismo que glorifica o gig economy. Mas para homens e mulheres precários, o preço é alto: solidão emocional, rivalidades internas (inveja por "estrelato" efémero) e uma independência que se desfaz ao primeiro contratempo, como uma gravidez indesejada ou burnout. Enquanto o estudo da UPorto nega coerção explícita, ele inadvertidamente ilustra a precariedade: 60% dos entrevistados mantêm empregos secundários, e o "orgulho profissional" coexiste com o stress de agendas imprevisíveis. Em última análise, estes arranjos em Lisboa e Porto não libertam; prendem. Urge uma regulação que proteja sem criminalizar – talvez inspirada nos modelos escandinavos de apoio a trabalhadores sexuais –, para transformar promessas vazias em direitos reais. Só assim a "independência" deixará de ser uma miragem no ecrã.

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