Imagina que a diplomacia europeia pós-2018 é um grande tabuleiro de xadrez em que a Alemanha (o jogador mais forte economicamente e com a estratégia mais racional e calculista) quer impor uma visão protestante/secular do jogo: movimentos frios, baseados em números, disciplina orçamental, responsabilidade individual dos Estados e meritocracia económica (o famoso “ordoliberalismo” alemão).
Os países do Sul da Europa, porém, jogam o mesmo tabuleiro com regras marcadamente católicas, herdadas de séculos de cultura contrarreformista e de uma visão teológica da culpa, da redenção coletiva e da caridade:
- Na lógica protestante alemã → o devedor é pessoalmente responsável; tem de expiar o pecado (austeridade dura) para ser “salvo” (voltar aos mercados).
- Na lógica católica mediterrânica → o pecado da dívida é coletivo, a redenção passa pela misericórdia e pela intercessão de “santos” (o BCE, a Comissão, a Alemanha rica) e a penitência pode ser aliviada por indulgências (fundos europeus, mutualização parcial da dívida, flexibilização de regras).
Resultado: sempre que a Alemanha tenta dar xeque-mate com a sua rainha (austeridade + regras fiscais rígidas), os países do Sul movem as peças segundo outra gramática moral. Em vez de aceitarem a derrota (ajustamento brutal), pedem absolvição coletiva e acabyse formam alianças de “pecadores” que forçam o “confessor” alemão a conceder perdão (Coronavírus Recovery Fund 2020-2021, suspensão do Pacto de Estabilidade, flexibilização do Mecanismo Europeu de Estabilidade, etc.).
Como isso prejudicou concretamente a Alemanha após 2018
- Fim da maioria “hanséatica” (2018-2019) A Liga Hanseática (países do Norte rigorosos) perdeu força exatamente porque Itália FdI (católico-conservador), Espanha (PSOE com forte base católica popular) e Portugal (PS com tradição católico-social) formaram um bloco mediterrânico que, apelando à “solidariedade cristã” e à “Europa das pessoas”, isolou Berlim.
- Pandemia e o NextGenerationEU (2020-2021) O grande tabu alemão — mutualização de dívida — foi rompido. Angela Merkel, pressionada por Macron, aceitou o princípio da dívida comum exatamente porque os líderes do Sul (Conte, Sánchez, Costa) usaram sistematicamente a retórica católica da “caritas europeia”, da “casa comum” e da “misericórdia” em vez de falar apenas em interesses nacionais crus. A Alemanha percebeu que, naquele registo moral, era impossível dizer “não” sem parecer o fariseu duro da parábola.
- Pós-Merkel (2021-2025) Com Scholz, a Alemanha tentou voltar ao rigor, mas o Sul já tinha interiorizado que pode sempre recorrer ao argumento moral-religioso: “Vocês, alemães ricos, têm o dever cristão de ajudar os irmãos mais pobres”. Isso bloqueou reformas mais duras do Pacto de Estabilidade e da união bancária e obrigou Berlim a aceitar sucessivos compromissos que diluíram a sua visão original.
Resumo da analogia
A Alemanha entrou no jogo europeu pós-2018 pensando que todos jogavam xadrez luterano (cada um responsável pelo seu pecado orçamental). Descobriu que os países do Sul jogam xadrez católico (o pecado é partilhado, a salvação é coletiva e há sempre um sacramento de reconciliação disponível). No final, quem impôs as suas regras morais foi o Sul — e a Alemanha, para não ficar como o “protestante mau” da história europeia, acabou por ceder muito mais do que alguma vez planeara.
Ou, dito de forma mais curta e popular em Portugal: “A Alemanha queria ser o padre jesuíta rigoroso que impõe jejum e cilício; acabou por ser obrigada a ser o padre franciscano que abre o celeiro e perdoa as dívidas em nome da misericórdia.”
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