Embora sejam frequentemente comparados (e até colocados como “rivais”), Dostoiévski (1821–1881) e Tolstói (1828–1910) representam duas visões quase opostas da existência humana, da moral, da fé e da sociedade. Juntos, formam o ápice do romance psicológico e filosófico mundial.
1. Fiódor Dostoiévski – o abismo da alma humana
Dostoiévski é o escritor da angústia existencial, do subterrâneo psicológico, da luta entre bem e mal dentro de uma mesma pessoa.
Principais características:
- Romance polifónico: várias vozes ideológicas convivem em pé de igualdade dentro da mesma obra (Bakhtin chamou isso de “polifonia”).
- Personagens extremos: assassinos, santos, niilistas, jogadores compulsivos, humilhados e ofendidos.
- Temas centrais: liberdade vs determinismo, o problema do mal, a possibilidade de redenção, a relação tortuosa com Deus, o niilismo moderno.
- Estilo febril, nervoso, cheio de monólogos interiores, delírios e cenas de escândalo.
Obras essenciais:
- Crime e Castigo (1866) – Raskólnikov e a teoria do “super-homem” que tem direito de matar.
- O Idiota (1869) – O príncipe Míchkin, um “homem positivamente bom” num mundo cruel.
- Os Demónios (1872) – Profecia assustadoramente precisa sobre revolução, terrorismo e ideologias totalitárias.
- Os Irmãos Karamázov (1880) – Sua obra-prima absoluta. O parricídio, a lenda do Grande Inquisidor, os três irmãos (Dmitri sensual, Ivan ateu-intelectual, Aliócha espiritual) e a pergunta fundamental: “Se Deus não existe, tudo é permitido?”
Curiosidade pessoal: Dostoiévski foi condenado à morte em 1849 por participar de um círculo intelectual, enfrentou um simulacro de fuzilamento e passou 4 anos na Sibéria. Essa experiência de “morte e ressurreição” marca toda a sua obra.
2. Liev Tolstói – a épica da vida e a busca da verdade moral
Tolstói é o escritor da totalidade da vida, da natureza, da história, da ética cristã prática (mas não dogmática).
Principais características:
- Realismo épico: descreve a vida em toda a sua extensão – batalhas, bailes, partos, mortes, campos de trigo.
- Narrativa omnisciente que entra na mente de dezenas de personagens (inclusive animais em alguns contos).
- Depois dos 50 anos, crise espiritual profunda → rejeita a Igreja ortodoxa institucional, torna-se anarco-cristão, pregador da não-violência, da simplicidade e do amor universal.
- Temas: sentido da história, a futilidade da guerra, a hipocrisia da alta sociedade, a busca de uma vida autêntica.
Obras essenciais:
- Guerra e Paz (1865–1869) – Considerada por muitos o maior romance já escrito. Retrata a invasão napoleónica da Rússia (1812) e acompanha centenas de personagens (Pierre Bezukhov, Andrei Bolkonsky, Natacha Rostova). Mistura ficção e ensaio histórico-filosófico.
- Anna Karénina (1875–1877) – “Toda família feliz é igual; toda família infeliz é infeliz à sua maneira.” Drama de adultério, mas também retrato da sociedade russa em transformação. Levin (alter-ego de Tolstói) procura sentido na vida rural e na fé.
- A Morte de Ivan Ilitch (1886), A Sonata a Kreutzer (1889), Ressurreição (1899) – Obras da fase tardia, mais didáticas e moralizantes.
- Contos curtos como “A Morte de Ivan Ilitch” ou “Quanto Terra Precisa um Homem?” são verdadeiras obras-primas de concisão e impacto.
Curiosidade: Tolstói abandonou a literatura “artística” nos últimos 30 anos de vida para escrever tratados religiosos e éticos. Chegou a ser excomungado pela Igreja Ortodoxa em 1901 e, em 1910, fugiu de casa aos 82 anos para viver como peregrino – morreu numa pequena estação de comboio.
Dostoiévski vs Tolstói em poucas palavras
| Aspeto | Dostoiévski | Tolstói |
|---|---|---|
| Foco principal | Interioridade psicológica | Vida exterior + busca moral |
| Visão da humanidade | Trágica, contraditória, abismal | É possível melhorar com esforço ético |
| Relação com Deus | Fé atormentada, dúvida radical | Fé racional, cristã não-violenta |
| Estilo | Febril, urbano, noturno | Épico, luminoso, campestre |
| Influência posterior | Existencialismo, psicanálise, Camus, Kafka | Gandhi, pacifismo, literatura realista |
Os dois nunca se encontraram pessoalmente, mas Tolstói leu Dostoiévski e chorou com “Memórias da Casa dos Mortos”. Dostoiévski morreu sem conhecer Guerra e Paz (que começou a ser publicada quando ele já estava muito doente).
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