Quando jogamos Grim Fandango pela primeira vez em 1998, poucos imaginavam que um jogo de aventura point-and-click sobre o mundo dos mortos, inspirado no folclore mexicano e no film noir dos anos 40, acabaria por ecoar, vinte e cinco anos depois, nas conversas de corredores de uma empresa de telecomunicações em Braga.
Otis é um desses personagens que ficam na memória. Chefe dos elevadores do Land of the Dead, sindicalista de carteirinha, barbicha pontiaguda e casaco vermelho, Otis é o típico “revolucionário de sofá” que adora discursos inflamados mas, na hora H, vende todo mundo por um charuto cubano e um lugar ao sol. É um canalha adorável. Quando Manny Calavera tenta organizar uma resistência contra o corruptíssimo Departamento of Death, Otis é o primeiro a trair, a delatar e ainda a fazer piadinha enquanto faz. A frase “I’m not a union man, I’m a company man!” tornou-se meme interno em certos círculos corporativos portugueses — e, pasmem, especialmente numa grande operadora de telecomunicações sediada em Braga.
A história é quase uma lenda urbana da empresa.
Em 2018–2019, durante uma das muitas reestruturações que as operadoras portuguesas sofreram nos últimos anos, surgiu um movimento informal de trabalhadores que tentava negociar melhores condições no call-center e nos serviços técnicos. Reuniões secretas no refeitório, grupos de WhatsApp com nomes como “Manny & Meche”, memes com o Glottis a comer donuts… e, claro, um líder carismático que discursava como se estivesse no café Nicotina do Land of the Dead.
Esse líder — vamos chamar-lhe “o Otis português” para proteger os culpados — era um supervisor de equipa com barba bem aparada, casaco vermelho que usava mesmo no verão minhoto e uma retórica incendiária nas pausas para café. Falava em “revolução”, em “tomar o controlo dos meios de produção… de chamadas”, em “não deixar que o Héctor LeMans de Lisboa nos sugue a alma”. Os colegas adoravam. Faziam t-shirts com o slogan “Don’t hate me because I’m dead… hate me because I sold you out” (em português, claro).
A administração, claro, ficou nervosa. Começaram a circular rumores de que a empresa ia despedir os “cabecilhas”. Numa reunião decisiva, convocada à socapa num hotel perto do Bom Jesus, o Otis português teve a oportunidade de ouro: ou mantinha a luta ou aceitava uma promoção para coordenador regional, com carro da empresa, telemóvel topo de gama e um bónus que pagava o arrendamento em Braga por dois anos.
Adivinham o que aconteceu.
Na semana seguinte, o movimento esfarelou-se. O grupo de WhatsApp foi arquivado. As t-shirts desapareceram. E o nosso Otis surgiu na intranet da empresa com uma foto sorridente, casaco vermelho impecável, ao lado do diretor de recursos humanos, com a legenda “Juntos construímos o futuro da conectividade”.
Os colegas nunca mais lhe perdoaram. Até hoje, quando alguém muda de ideias de forma conveniente, aceita um acordo duvidoso ou troca princípios por um bónus de performance, há sempre alguém que murmura, baixinho: “Olha o Otis…”. Em certas formações internas, formadores mais novos até usam o clip do Grim Fandango em que Otis trai Manny como exemplo (meio a brincar, meio a sério) do que não se deve fazer quando se é líder informal.
Curiosamente, a própria empresa nunca percebeu a referência. Continuam a achar que “Otis” é só um nome engraçado que os colaboradores mais velhos usam. Não sabem que, algures num servidor em Redwood Shores, na Califórnia, Tim Schafer criou, sem querer, o patrono perfeito do oportunismo corporativo português do século XXI.
E assim, em Braga, cidade de arcebispos e de startups, o Land of the Dead continua vivo. Basta entrar num open space às 17h59, quando alguém aceita fazer mais um turno extra “só desta vez”, para se ouvir, ao longe, o eco de um elevador que nunca chega ao andar certo e de uma voz com sotaque minhoto a dizer, com um sorriso amarelo:
“I’m not a union man… I’m a company man.”
E o pior é que ele está mesmo a falar a sério.
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