Dmitry Shostakovich (1960)
«À memória das vítimas de todas as guerras e do fascismo.» Assim reza a dedicatória oficial. Mas quem conhece minimamente a vida de Shostakovich sabe que a dedicatória é, no mínimo, incompleta. O Quarteto n.º 8 é também (e talvez sobretudo) um autorretrato em forma de grito abafado, um réquiem por si próprio escrito em vida.
Compôs-se em apenas três dias – de 12 a 14 de Julho de 1960 – durante uma viagem a Dresden, ainda em ruínas quinze anos após o bombardeamento aliado. Shostakovich, então com 53 anos, estava profundamente deprimido: acabara de ser forçado a filiar-se no Partido Comunista (um acto que considerava traição à própria alma), sofria de uma doença neurológica progressiva e tomava antidepressivos. Chegou a escrever uma carta de despedida à amiga Isaak Glikman, revelando intenções suicidas. O quarteto nasceu desse abismo.
Cinco movimentos seguidos, sem pausas, em pouco mais de 20 minutos. Tudo é citações – de si mesmo e dos outros – como se o compositor estivesse a folhear desesperadamente o álbum da própria vida antes de o fechar para sempre:
- O motivo DSCH (Ré-Mi bemol-Dó-Si) – a sua assinatura musical – aparece obsessivamente, como um coração que bate em pânico.
- Citações da Primeira Sinfonia (a inocência perdida da juventude), da Segunda Sinfonia, do Trio n.º 2 (dedicado às vítimas do fascismo… e do estalinismo), da Lady Macbeth, do Quinteto para piano, da ópera Katerina Izmailova (condenada pelo Pravda em 1936), da canção revolucionária «Zamuchen tyazholoy nevoley» (torturado pela pesada escravidão), da ária «Seryozha, meu amor» (um lamento de amor impossível), e até do funeral de Lenin na Sinfonia n.º 11.
- No segundo movimento, a melodia judaica do Trio n.º 2 surge distorcida, como se fosse esmagada por botas.
O segundo movimento (Allegro molto) é uma dança macabra, quase histérica, com os quatro instrumentos a baterem nas cordas como se fossem metralhadoras. O terceiro (Allegretto) é um scherzo cruel, uma valsa grotesca onde o motivo DSCH é atirado de arco em arco como uma bola num jogo de morte. O quarto movimento é o coração negro da obra: três pancadas secas (o toque à porta da NKVD às 3 da manhã) abrem um lamento lento, gelado, em que a viola cita a canção dos prisioneiros. O finale retoma o fugato do primeiro movimento, mas agora exausto, resignado. A música morre em surdina, como quem apaga lentamente a luz.
Shostakovich pediu que este quarteto fosse tocado no seu funeral. Não foi – talvez porque era demasiado verdadeiro. O Quarteto n.º 8 não é apenas música sobre o totalitarismo; é música escrita dentro do totalitarismo por alguém que sabia que cada nota podia ser a última. É o som de um homem que já não consegue distinguir entre o fascismo de ontem e o de hoje, entre os campos nazis e os gulags soviéticos, entre a morte física e a morte moral.
Quando o Quarteto Borodin o estreou em Leningrado, a 2 de Outubro de 1960, o público ficou em silêncio absoluto durante longos minutos. Alguns choravam. Outros, antigos prisioneiros políticos, reconheceram imediatamente as pancadas na porta.
Mais de sessenta anos depois, o Quarteto n.º 8 continua a ser uma das obras mais executadas do século XX – e uma das mais temidas pelos intérpretes. Não pela dificuldade técnica (não é dos mais difíceis), mas pela intensidade emocional: tocar este quarteto é como entrar num quarto onde alguém acabou de se enforcar.
É, simplesmente, uma das confissões mais devastadoras que a música alguma vez produziu. Ouve-se uma vez e fica-se marcado para sempre. Ouve-se muitas vezes e percebe-se que, no fundo, ainda estamos todos lá dentro.
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