Estranhamente belo, profundamente perturbador e espiritualmente luminoso: assim se pode descrever o Quarteto para o Fim dos Tempos (1941), uma das obras mais singulares e comoventes do século XX.
Compuosto por Olivier Messiaen quando era prisioneiro de guerra no Stalag VIII-A, na Silésia (actual Polónia), em pleno Inverno de 1940-1941, o quarteto nasceu em condições de extrema precariedade. Messiaen dispunha apenas de um violoncelo com três cordas, um clarinete em mau estado, um violino e um piano desafinado. A estreia mundial deu-se a 15 de Janeiro de 1941, ao ar livre, perante cerca de 400 prisioneiros e guardas alemães, sob um frio glacial. O próprio compositor recordaria mais tarde que muitos choraram nessa noite – não apenas pela música, mas porque, por alguns instantes, se sentiram humanos outra vez.
A obra é escrita para uma formação invulgar: clarinete, violino, violoncelo e piano. São oito movimentos, inspirados no capítulo 10 do Apocalipse de São João, mas Messiaen subverte completamente a ideia tradicional de “fim dos tempos”. Não há catástrofe, nem terror apocalíptico. Há antes uma suspensão do tempo, uma eternidade contemplativa. O próprio título completo é revelador: Quatuor pour la fin du temps – e não de la fin des temps. Ou seja, não é um quarteto sobre o fim dos tempos, mas um quarteto para o fim do tempo linear, para a entrada na eternidade divina.
Os movimentos mais célebres são:
- I. Liturgie de cristal – uma aurora sonora, com o canto dos pássaros (Messiaen era um apaixonado ornitólogo) transfigurado em ritmos não retrogradáveis e harmonias estáticas.
- III. Abîme des oiseaux – um solo de clarinete de cortar a respiração, onde o tempo parece dissolver-se por completo. É uma das páginas mais desoladas e sublimes da literatura para o instrumento.
- V. Louange à l’Éternité de Jésus – um longo canto do violoncelo com acompanhamento de piano, de uma lentidão quase insuportável, onde cada nota parece durar uma eternidade.
- VIII. Louange à l’Immortalité de Jésus – o movimento final, com o violino, é a contrapartida luminosa do anterior: a mesma melodia, agora ascendente, como se a alma finalmente se libertasse.
Musicalmente, o quarteto é revolucionário. Messiaen utiliza:
- Modos de transposições limitadas (as suas famosas “cores” harmónicas);
- Ritmos não retrogradáveis (palíndromos rítmicos que simbolizam a eternidade);
- Ritmos gregos antigos e indianos (talas);
- Transcrições precisas de cantos de pássaros (rouxinóis, melros, cotovias…);
- Uma concepção teológica da música onde o som é veículo de revelação.
O resultado é uma obra que soa ao mesmo tempo antiga e futurista, terrena e celestial. Não é música “de guerra”, mas música apesar da guerra. É um acto de resistência espiritual: onde o nazismo tentava reduzir o homem a número, Messiaen respondeu com uma música que afirma a dignidade absoluta do ser humano e a sua vocação para o infinito.
Oitenta e quatro anos depois da estreia no campo de prisioneiros, o Quarteto para o Fim dos Tempos continua a ser uma das obras mais interpretadas e gravadas do repertório contemporâneo. Cada nova audição parece revelar camadas mais profundas. E, paradoxalmente, é uma das poucas obras do século XX que consegue ser ao mesmo tempo radicalmente moderna e imediatamente comovente.
Em tempos de ansiedade colectiva, de guerras e de incerteza, ouvir este quarteto é lembrar que a beleza pode nascer nos lugares mais improváveis – e que, mesmo no meio do abismo, é possível erguer um hino à eternidade.
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