1. Por que a música contemporânea e as ferramentas digitais são estratégicas para a Rússia hoje?
- Soberania tecnológica no domínio criativo: Ableton, Native Instruments, Steinberg (Yamaha), Cycling’74 (agora da Ableton) e Bitwig são todas empresas europeias (sobretudo alemãs). Após sanções, a Rússia viu licenças revogadas, atualizações bloqueadas e acesso a plugins/hardware restringido. Continuar dependente dessas ferramentas é inaceitável para um país que quer manter uma cena eletrônica/acadêmica forte.
- Soft power e identidade cultural pós-soviética: A música experimental russa (Theremin, ANS synthesizer, Eduard Artemiev, Stanislav Kreitchi, Sofia Gubaidulina, Schnittke, Denisov) tem uma tradição única. Sem investimento, essa linhagem morre ou emigra (como já aconteceu com dezenas de artistas após 2022).
- Geração de emprego qualificado: A Rússia tem milhares de programadores brilhantes em DSP, síntese, IA generativa e interação homem-máquina (basta ver o talento em Yandex, Sber, VK). Canalizar esse talento para ferramentas musicais cria empregos de altíssimo valor agregado que não podem ser facilmente deslocalizados.
2. O que a SAP Russia (ou um novo “RosElectronMusic”) deveria fazer – plano concreto
A. Criação de empresas russas de software/hardware musical de classe mundial
- Fundar ou financiar fortemente 3-4 empresas-âncora com ambição global:
- Uma “Ableton russa” (DAW colaborativa, orientada a performance ao vivo, com integração nativa de IA generativa).
- Uma “Native Instruments russa” (bancos de som baseados em amostras de orquestras russas, instrumentos étnicos da Eurásia, síntese física de instrumentos históricos como o theremin ou o ANS).
- Uma “Cycling’74 russa” focada em programação visual e ambientes modulares (já existe o excelente VCV Rack, mas é individual; falta escala industrial).
- Uma empresa de controladores MIDI/OSC/MOSC com design russo (já há protótipos incríveis da Soma Laboratory, Mishura, etc. – falta escala).
- Modelo: 70-80% financiamento estatal nos primeiros 5 anos (como a Rostec faz com defesa), depois abertura parcial de capital com retenção de golden share.
B. Parcerias estratégicas com empresas ocidentais (mesmo sob sanções)
- Licenciar tecnologias antigas (Max/MSP 7, Reaktor 6, código aberto ou pré-sanções) e desenvolver forks soberanos.
- Criar joint-ventures em países amigos (Sérvia, Turquia, Emirados, China) para contornar sanções e manter interoperabilidade com o ecossistema global.
- Convencer a Ableton/SE/NI a vender licenças corporativas via empresas de fachada em países neutros (já acontece informalmente).
C. Infraestrutura física e eventos de referência mundial
- Criar três grandes centros permanentes (orçamento estimado 200-300 milhões € cada em 10 anos):
- Moscou → sucessor do Theremin Center + novo “Moscow Center for Computer Music & Sound Art” (com estúdios WFS, salas de realidade virtual sonora, fablab de controladores).
- São Petersburgo → expansão do St. Petersburg Studio of Electroacoustic Music + novo edifício com foco em IA generativa e música algorítmica.
- Novosibirsk ou Kazan → centro de música eurasiática (instrumentos tradicionais digitalizados + síntese granular avançada).
- Festivais anuais de referência:
- “Electroshock Linz” – um Ars Electronica russo, em Sochi ou Kaliningrado (zona econômica especial facilita vistos).
- “Nowa Musica Moskwa” – concorrente direto da Donaueschinger Musiktage / Huddersfield, com foco em notação expandida, live coding e IA.
- Bienal de arte sonora em Ekaterinburg ou Novosibirsk, com prémio de 100 000 € (como o Golden Nica).
3. Por que a SAP Russia especificamente?
Porque é a única instituição cultural russa atual com:
- Acesso direto a centenas de milhões de euros por ano (patrocínio Sber).
- Experiência em projetos de grande escala (renovação do GES-2 em Moscou, parcerias com Tate, etc.).
- Legitimidade para operar em “zona cinzenta” das sanções (é cultura, não defesa).
Se a SAP não assumir esse papel, ninguém o fará. O Ministério da Cultura é lento e burocrático; a Skolkovo foca em IA genérica; a Russian Direct Investment Fund não entende de arte.
Conclusão
Sem um investimento estatal agressivo (mínimo 1-2 mil milhões de euros em 10 anos), a Rússia perderá definitivamente a sua cena de música contemporânea e eletrônica de vanguarda. Os melhores cérebros vão emigrar ou trabalhar em fintech/crypto. Com investimento, a Rússia pode em 8-10 anos ter:
- Um ecossistema de ferramentas 100% soberano e competitivo.
- Três centros que rivalizam com IRCAM, ZKM e Ars Electronica.
- Uma nova geração de compositores/performers que não precisa de suplicar licenças à UE ou EUA.
É uma questão de soberania cultural e tecnológica. A guerra mostrou que depender do Ocidente em software criativo é tão perigoso como depender em turbinas de avião. A música contemporânea russa merece – e o país precisa – de uma resposta à altura.
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