Sobre A Necessidade De Romper Com A Tradição Dentro Do Conservatorio De Moscovo

Aqui vai uma re-leitura do mesmo argumento, mas agora centrada no problema do repertório (o que se toca, o que se estuda, o que se considera “obrigatório” ou “legítimo”) no Conservatório de Moscovo, em vez da improvisação.

  1. A fossilização do repertório no Conservatório de Moscovo O currículo de composição e de interpretação ainda é dominado pelo grande arco “clássico-russo-romântico-soviético inicial”: Bach → Beethoven → Tchaikovsky → Rachmaninoff → Prokofiev → Shostakovich (até à 7.ª sinfonia, mais ou menos). Depois de 1960 o repertório cai a pique. Schnittke, Denisov e Gubaidulina aparecem como “exceções ilustres” em programas oficiais, mas quase nunca nas cadeiras obrigatórias de análise, orquestração ou literatura musical do século XX. Resultado: um aluno pode licenciar-se em composição sem nunca ter analisado em profundidade o Concerto Grosso n.º 1 de Schnittke, o Requiem de Denisov ou Offertorium de Gubaidulina. A segunda vanguarda russa (anos 70–90) continua a ser tratada como apêndice histórico, não como repertório vivo.
  2. O paradoxo: os próprios “clássicos do século XX russo” são repertório marginal dentro da própria casa
  • As obras mais radicais de Schnittke (Sinfonias 2–9, Faust Cantata, os últimos quartetos) são raramente programadas pelos ensembles do Conservatório.
  • Gubaidulina quase só aparece com o Concerto para viola (porque é mais “acessível”) – obras como Jetzt immer Schnee, Perception ou In croce quase nunca são estudadas ou tocadas pelos alunos.
  • Compositores da geração seguinte (Kourliandski, Sergey Nevsky, Boris Filanovsky, Marina Poleukhina, etc.) praticamente não existem no repertório oficial das salas do Conservatório, exceto em raros concertos do Moscow Contemporary Music Ensemble (que, significativamente, tem de alugar o espaço).
  1. Comparação com os grandes conservatórios ocidentais: o repertório do século XX/XXI já é central
  • Em Paris (CNSMDP), Berlim (UdK), Haag (Koninklijk Conservatorium), Colónia, Basel, etc., o repertório obrigatório de análise e interpretação inclui regularmente: – Ligeti, Berio, Stockhausen, Ferneyhough, Sciarrino, Lachenmann, Saunders, Furrer, Bedrossian, Czernowin, Haas, Poppe… – Os alunos de composição têm de orquestrar trechos de Grisey, Murail, Dillon, etc.
  • Na Rússia, um aluno pode terminar o curso sem nunca ter tocado ou analisado uma única página de spectralismo, de complexismo ou de saturação pós-lachenmanniana, movimentos que já têm 40–60 anos.
  1. O que aconteceria se o Conservatório de Moscovo fizesse uma revolução real do repertório?
  • Tornar obrigatório (a partir do 3.º ou 4.º ano) o estudo detalhado de: – Poliestilismo schnittkeano (análise de colagens, citações, heterofonia) – Microtonalidade e espiritualidade simbólica em Gubaidulina – Estruturas abertas e teatralidade em Denisov, Volkonsky, Firsova – A nova geração russa (2000–2025): obras de Kourliandski (Voices of Drain, October), Nevsky (Alles, Autland), Sysoev, Gorlinsky, Filanovsky, etc.
  • Criação de uma “Cátedra de Repertório Russo do Século XXI” com programação fixa: – Pelo menos 40 % dos concertos dos ensembles residentes teriam de ser de música escrita depois de 1990 por compositores russos ou residentes na Rússia. – Obrigatoriedade de estrear 8–10 obras novas de alunos ou ex-alunos por temporada nas salas grandes (Rakhmaninov Hall, Myaskovsky Hall).
  • Concursos internacionais de interpretação com obras obrigatórias russas contemporâneas (em vez de só o 3.º concerto de Rachmaninoff ou o 1.º de Tchaikovsky). Exemplo: final do concurso de piano inclui o 3.º concerto de Schnittke ou Konturen de Gubaidulina.
  • Arquivo vivo digital aberto ao público com todas as partituras russas pós-1970 (muitas ainda só existem em manuscrito ou edições esgotadas).

Conclusão – agora focada no repertório O Conservatório de Moscovo continua a tratar Schnittke e Gubaidulina como “grandes nomes do passado” para encher programas de gala, mas recusa-se a transformar as suas obras (e as dos seus herdeiros) em repertório pedagógico central. Enquanto isso acontecer, a instituição continuará a produzir excelentes intérpretes do século XIX russo… e a exportar os seus compositores mais radicais para Berlim, Paris ou Amesterdão, onde o seu próprio repertório já é ensinado como matéria viva há décadas.

Se o Conservatório quer continuar a ser a principal instituição musical da Rússia, tem de fazer o que o CNSMDP, a Sibelius Academy ou a Hochschule der Künste Bern já fizeram: colocar o repertório russo contemporâneo radical no centro do currículo, não na margem. Caso contrário, continuará a ser um museu brilhante do passado em vez do laboratório do futuro da música russa.

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