Sobre "Questões Aperaltivas" Em Veto De Inconstitucionalidade Civil

 A sua pergunta toca num tema muito profundo e sensível em Portugal (e noutros países com tradição de Estado de Direito democrático): a tensão entre segurança pública, proteção de vítimas (especialmente as mais vulneráveis) e garantias constitucionais fundamentais, nomeadamente o princípio da presunção de inocência, o direito ao recurso efectivo e a proibição de decisões arbitrária ou irreversíveis por parte do Estado.

Vou tentar explicar, de forma clara e estruturada, porque não existe nem deve existir um “direito de veto inviolável de inconstitucionalidade civil” que permita revogar sumariamente direitos fundamentais, nem porque se deva entregar a justiça penal ou a investigação criminal a sistemas automatizados de IA/SAP sem controlo humano e judicial rigoroso.

1. O que significa “direito de veto inviolável de inconstitucionalidade civil”?

Essa expressão não existe no ordenamento jurídico português nem na generalidade dos Estados democráticos. Parece ser uma construção retórica que pretende dizer qualquer coisa como:

«Deveria existir134 um mecanismo automático e irreversível que, quando alguém é acusado de certos crimes graves (pedofilia, violência doméstica grave, corrupção, etc.), suspendesse imediatamente e para sempre certos direitos civis (ex.: autoridade parental, direito de voto, sigilo bancário, privacidade digital, etc.) sem possibilidade de recurso efectivo.»

Isso seria, em termos jurídicos, uma pena acessória automática e irreversível aplicada por suspeita, e não por sentença transitada em julgado.

2. Porque é que isso é radicalmente inconstitucional (e deve continuar a ser)

A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra princípios intocáveis, mesmo em estado de emergência (artigo 19.º):

  • Artigo 27.º – Presunção de inocência até trânsito em julgado da sentença condenatória
  • Artigo 32.º – Garantias de processo criminal (direito ao contraditório, recurso, prova, defesa)
  • Artigo 26.º e 35.º – Inviolabilidade da vida privada, dados pessoais, comunicações
  • Artigo 20.º – Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva

Qualquer mecanismo que permitisse, por exemplo:

  • tirar filhos a um pai só por denúncia anónima ou algoritmo de risco,
  • congelar contas bancárias sem ordem judicial fundamentada,
  • monitorizar permanentemente comunicações privadas de alguém apenas suspeito,

…seria declarado inconstitucional com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional em menos de nada (já aconteceu com leis bem mais suaves).

3. Porque é que isso seria extremamente perigoso para a sociedade civil

História recente portuguesa e europeia está cheia de exemplos:

  • Casos de denúncias falsas em disputas de divórcio ou guarda de menores (há centenas por ano)
  • Erros judiciais graves (ex.: caso Casa Pia – algumas pessoas passaram anos presos e depois foram absolvidas)
  • Utilização política ou mediática de acusações para destruir reputações (ex.: processos que duram 10–15 anos e acabam em absolvição)

Se criássemos um “veto inviolável automático”, bastaria uma denúncia (verdadeira ou falsa) para destruir irremediavelmente a vida de uma pessoa e da sua família. Isso criaria um instrumento de vingança privada perfeito, imune a controlo judicial.

4. O que pode (e deve) ser feito de forma constitucional e eficaz

Não precisamos de violar a Constituição para proteger crianças e vítimas. Já existem (e podem ser melhoradas) ferramentas constitucionais:

  • Medidas de coacção fortes e rápidas (prisão preventiva, pulseira electrónica, afastamento do lar, proibição de contactos) decididas por juiz em 48–72 h
  • Julgamentos prioritários em crimes sexuais contra menores e violência doméstica (já existem tribunais especializados)
  • Bases de dados de condenados (Registo Criminal, Registo de Aggressores Sexuais)
  • Partilha rápida de informação entre polícias, Ministério Público e tribunais
  • Uso de IA e big data como ferramenta de apoio à decisão humana, nunca como decisão automática (ex.: sistema PredPol ou o algoritmo de risco do sistema prisional português é usado apenas para ajudar juízes, não para substituir)

5. Tecnologia SAP / IA / criptografia na justiça penal – onde deve ser usada

Sim, a tecnologia pode e deve ser usada massivamente, mas sempre com estes limites:

  • Criptografia forte para proteger dados sensíveis de vítimas
  • IA para cruzamento rápido de dados (ex.: detectar padrões de pedofilia na darkweb ou redes sociais)
  • Automação de tarefas repetitivas (transcrição de audiências, análise de milhões de mensagens)
  • Sistemas de alerta precoce em violência doméstica (já testados nalguns países)

Mas nunca para decidir automaticamente a culpa ou aplicar sanções irreversíveis sem juiz humano.

Conclusão

Não precisamos de revogar a Constituição nem criar “vetos invioláveis” para proteger crianças e vítimas. Precisamos sim de:

  • Mais meios para a Polícia Judiciária e Ministério Público
  • Juízes e procuradores especializados e em número suficiente
  • Processos mais rápidos (a morosidade é o grande cancro)
  • Tecnologia avançada usada com inteligência e controlo humano

O dia em que entregarmos a justiça penal a algoritmos ou a mecanismos automáticos irreversíveis será o dia em que deixaremos de viver num Estado de Direito democrático e passaremos a viver num estado policial digital – e aí as verdadeiras vítimas serão todos nós.

Se quiser, posso indicar-lhe decisões concretas do Tribunal Constitucional ou relatórios da PJ sobre a eficácia das medidas existentes versus as falsas soluções autoritárias.

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